A presença dos berimbaus é essencial para que determinado evento seja concebido como uma roda de capoeira. A princípio, a assimilação do berimbau dentro da capoeira fezse a partir do disfarce de seu caráter subversivo e marcial, que sob o manto da dança e da música escondia um tipo de luta corporal. Mas, por outro lado, representa uma comprovação daquilo que chamamos multidimensionalidade das culturas africanas, condição que se impõe em toda manifestação artística afro-descendente. Assim, a aparição e a presença dos instrumentos musicais, sejam eles berimbaus ou quaisquer outros, surgem dessa condição imanente da cultura africana ou afro-americana, em que aspectos musicais, dançantes, vestuários, culinários, religiosos se fundem dentro de 82 uma mesma expressão, oriundos que são das culturas diaspóricas que trouxeram em sua estrutura o aspecto da multidimensionalidade do qual a música e os instrumentos musicais são parte constituinte e fundamental. Valdeloir Rego chega a citar um levantamento que assinala a presença do berimbau em Cuba. Lembre-se ainda da modalidade do berimbau de boca, encontrado de forma abundante na África, mas também na Europa. Essa ocorrência “em vários cantos do universo”83, segundo Rego, corresponde à indefinição de sua origem, possivelmente africana. Atualmente não é preciso esforço para associar a capoeira ao berimbau, que há muito vem impregnando o imaginário dessa prática cultural. O instrumento está de tal forma associado a esse território que atualmente seria inconcebível uma roda de capoeira sem a aplicação efetiva deste arco musical. A forma do berimbau é simples e seus materiais, em certa medida, ainda são facilmente coletados na natureza, exceto, obviamente, pela corda de arame de aço, chamado no meio da capoeiragem simplesmente de arame. Provavelmente, o berimbau foi uma das primeiras criações de objetos musicais que emitem som através da vibração de uma corda. A parte mais importante do berimbau utilizado nas rodas de capoeira é a vara ou verga da árvore conhecida como biriba (Eschweilera ovata), comumente encontrada ao longo da Mata Atlântica do Estado da Bahia. Afixado às duas extremidades da verga vem um arame. Na ponta superior do berimbau, emprega-se um pedaço circular de couro de sola pregado que servirá de polia para se envergar o berimbau. A cabaça, com uma abertura ou boca que pode variar de tamanho, deverá ser presa na extremidade inferior da verga, a uma distância de aproximadamente um palmo da extremidade inferior da verga para cima. Completando a composição do berimbau, há ainda um dobrão de cobre que, ao entrar em contato com o arame, altera a tonalidade do som que ressoa da cabaça. A baqueta ou vaqueta é uma vareta de madeira fina que não deverá passar da medida convencionada de dois palmos e não inferior a um palmo e meio de mão. Por fim, o último artigo corresponde a um instrumento musical à parte que o acompanha – o caxixi –, um chocalho que produz um som agudo, confeccionado em palha de vime trançada num pedaço circular de cabaça, que funciona como a base na qual a semente conhecida como Lágrima de Nossa 83 REGO, Waldeloir.. Op.Cit .pp.71-76. 83 Senhora vai vibrar para emitir um som semelhante ao da chuva caindo nas folhas das árvores. Infelizmente, a biriba está cada vez mais escassa devido à intensa exploração dessa árvore para comercialização de berimbaus. Atualmente, chegam ao mercado internacional através dos sites que trabalham com venda de instrumentos de percussão, ou pelas mãos dos mestres de capoeira que cruzam o mundo. A utilização do berimbau em terras brasileiras era comum em diversas cenas do cotidiano carioca. Fez parte, por exemplo, da indumentária do vendedor ambulante no Rio de Janeiro colonial. Além de sua permanência ao longo dos séculos, é notável que sua forma praticamente não tenha sido alterada, pois apenas alguns materiais foram substituídos por outros, o que não comprometeu a sua estrutura básica. Constata-se, dessa forma, a vitalidade e o poder de permanência desse instrumento musical, possibilitando que o mesmo ultrapassasse o tempo, as culturas e as fronteiras. Nas rodas tradicionais de capoeira, são utilizados três berimbaus criadores da célula rítmica binária que caracteriza a maior parte dos toques da capoeira. São eles: o berimbau gunga, grave e maior de todos; o berimbau médio, como o próprio nome indica localiza-se numa sonoridade intermediária; e o berimbau viola ou violinha, responsável pelos agudos dessa tríade instrumental. A disposição dos instrumentos da capoeira numa roda se orienta por convenções normalmente criadas pelos velhos mestres durante suas trajetórias e experiências. Esses berimbaus guardam aspectos que os relacionam diretamente ao candomblé, como também a outras tradições de origem africana, principalmente no que se refere aos três atabaques dessa religião afro-brasileira, assemelhando-se à organização e estruturação rítmica do candomblé. Um paralelo relacionando a musicalidade dessas duas manifestações culturais, a capoeira e o candomblé, mostrará células rítmicas muito semelhantes. O gunga, berimbau que emite uma sonoridade mais grave e de maior porte, aparece na roda desempenhando um papel de marcação, determinando e orientando qual ritmo será executado durante todo o tempo de uma roda. A sua posição é destacada na hierarquia dos instrumentos. Ele é o responsável direto tanto pela ativação dos códigos que provocam o início das cerimônias, como o encerramento da roda. Da mesma forma que o gunga, o atabaque mais grave do candomblé, denominado rum, na maioria das vezes está 84 posicionado à direita dos outros dois atabaques. Porém, ao contrário do gunga, sua função não é de marcação, mas sim de variação e improviso. Mesmo com essa diferença, tanto o rum quanto o gunga encarnam o papel de liderança e comando nas ações musicais dos rituais. O berimbau viola corresponde, de acordo com a analogia que vimos demonstrando, ao atabaque de menor porte, chamado lé no candomblé. Enquanto o viola faz as variações e improvisos, o lé responde pela marcação do ritmo. A sonoridade desses dois instrumentos preenche aquele espaço dos sons agudos nos rituais dessas manifestações. Finalmente, o berimbau médio encontra seu análogo no atabaque rumpi, já que tanto um quanto o outro atua como ponte entre dois pólos sonoros. Desta forma, harmonizam o diálogo entre as sonoridades graves e agudas dos outros dois berimbaus e atabaques: gunga e viola na capoeira e rum e lé no candomblé.
Fonte :
http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Dossi%C3%AA_capoeira.pdf